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CONTO: Um monólogo sobre ciúmes com Deus

"Para a minha escolhida"


...


A maior beleza apreciável em um dia de sol é a ilusão da luz, mas coloque seu dedo indicador de lado e pouse-os sobre as duas sobrancelhas, feche o olho oposto da mão usada e faça um círculo com os dedos restantes para perceber que mesmo que sua visão se ajuste de imediato para ver a luz a escuridão ainda estará ao redor de tudo. A terra, o sol, a galáxia, tudo é assim, um ponto de luz envolto em uma escuridão. Não engane-se pensando que a luz veio primeiro ou é maior.


Naquele dia havia apenas uma sombra, não de um homem ou de um objeto, mas de tudo. Ele estava ali, mergulhado na escuridão, sentado em uma poltrona vermelha no meio do quarto com as pernas jogadas em cima da cama de solteiro antiga que lhe acolhia naquelas noites de solidão, bem esticadas e com a esquerda sobre a direita para que ele lembrasse que não deveria estar confortável com aquela situação.


Os olhos estavam abertos e fixados no forro do teto que ora fora branco como a batina de um bom coroinha que já havia sido, contudo, não era possível enxergar, não havia luz. Ele fechou a janela e a porta, apagou a luz. Não houveram palavras, não ouviu-se segredos, não tocaram as mais belas músicas, não havia nada além do tremor incessante de seus olhos que procuravam brilho no firmamento do breu.


Os pensamentos começavam a umedecer sua íris castanha, nas pontas dos braços soltos de forma desleixada para os lados da poltrona os punhos se contraíram dando-lhe força para fechar os olhos e guardar as lágrimas para depois. Ele engoliu a saliva áspera que havia se formado pelo esforço de manter-se calado após ter desejado gritar com toda a força de seus pulmões.


Seus olhos abriram, uma visão negra e ofuscada formou-se, era a resposta natural e mais simples para quem passa pelo puro horror da decepção daqueles que não admitem perder. Ele sentia que havia perdido. Ele nivelou a cabeça para frente e começou sua busca por respostas de onde julgou que poderia encontrar a Deus, no nada. Talvez tenha pedido para ser ignorado, mas seus pensamentos foram tantos que não haveria tempo para compreender.


- Olá. – Respirou fundo, quase decepcionado, após perceber que era a primeira vez que fazia isso em sua vida. – Você pode me ouvir? – Disse engasgando com a garganta seca. Preocupou-se, talvez ELE não gostasse de falhas na voz. Resolveu que era pura infantilidade, se houvesse um Deus ele não ligaria para tal, deixou-se levar pela raiva contra si que o consumiu após ter errado, disse gravemente inclinando-se para frente e apoiando os antebraços nas coxas:


"Se você está aí, responda-me!"

Soltou o ar e os ombros quando terminou.


Esperou... Enfim continuou, aliviado, como se falasse para um amigo suas aflições, com um tom descansado, confiante do que sente, do que sentiu:


- Eu gostaria de lhe dizer que quando eu tenho ciúmes meu coração dispara, minha pele se aquece, a palma das mãos suam, meu corpo inteiro treme e ninguém pode perceber. Não é um tremor de frio, vêm de dentro, eu fico incontrolavelmente nervoso como nunca experimentei antes. – Sem perceber, fez uma longa pausa enquanto colocava a mão esquerda sobre o cabelo e apoiou o cotovelo na perna, não tinha orgulho de nada do que falaria a seguir:


– Em meus ciúmes teria esmurrado uma parede sem me preocupar com minha mão ou espancado uma pessoa com a mesma facilidade e falta de dor ou remorso com que bebo água. Penso em milhares de formas trágicas para o mundo acabar. Vislumbro milhões de pessoas morrendo, o mundo acabando e... – Limpou a garganta antes de sorrir com o canto da boca para falar. – Ela se preservando. – Ele baixou a mão para cima da boca, se envergonhava do que falaria. Tomou coragem inspirando, baixou a mão deixando-a solta no meio das pernas.


- Meu ciúme é o responsável por já ter fabulado inúmeras vezes a minha morte. Durante o banho, mesmo na água quente, sinto minhas lágrimas descendo e rasgando minha pele em pedaços, me descontrolo, preciso apoiar as duas mãos abertas no vidro do box e observar seu embaraçar para não cair em desespero e gritar com raiva. – Satisfeito pelo desabafo tentou demonstrar segurança e conhecimento sobre a religião que a muito não praticava, mas só conseguiu transmitir tristeza na voz:


- Sei que tais pensamentos não são puros, sinto minha alma agonizando e compreendo o porquê: não vou poder permanecer ao lado dela no paraíso. Mas acho que isso a faria bem... minha morte. Esses pensamentos desapareceriam, ela estaria... – Entusiasmado como quem acha resposta para um desafio chegou a beira de um grito contido pela união das palmas das mãos frente ao rosto. – Livre! – Entrelaçou os dedos, cerrou os olhos e contido após a pequena explosão continuou:


..........


"Livre da minha prisão de pensamentos e desejos que nunca contei ou alimentei na vida real. Que jamais contarei. Eu sou assim, um homem sem segredos sociais, mas com um universo inteiro de segredos internos, de pesadelos pessoais incontroláveis que me obrigam a isolar-me para que não machuque ninguém com minhas ganâncias, mas que continua a machucar quem mais ama porque não sabe agir de forma diferente, pois julgo que essa é o modo que menos causará dor. Por mais que eu pense: não desejo dor à ninguém."


..........


Ele fechou os olhos e encostou os dois dedões na parte interior das sobrancelhas, as lágrimas finalmente transbordaram, era a sua verdade estampada. Sua melhor descrição daquilo que tanto lhe causava sofrimento. E só ficaria pior. Com os olhos vermelhos levantou o rosto e continuou, transtornado pelo poder que a verdade lhe causava:


- Meu ciúme não concorda que ela dê atenção para mais ninguém. Mas ela continuará amando quem meu coração não compreende. – Ele reclinou para trás, apoiou a cabeça no topo da poltrona, olhando para o teto novamente, com os mãos nas pernas.


– Eu sustentei o que todos chamam de “amor” sozinho durante todos esses anos. Não compreendo a dimensão disso para ela. Nunca precisei dos outros me dizendo que me amam para sorrir e ter um bom dia. Entretanto, sempre procurei alguém que merecesse receber isso de minha parte. Creio que esse alguém deveria receber isso apenas de mim, assim eu seria especial para ela. E se for para ser assim, sofrendo por tudo que vejo, para não ser o único, eu prefiro...


Estagnou a fala por um momento para que seu pensamento tivesse a certeza do que viria a seguir, voltou a cabeça para frente. Já não haviam lágrimas. A escuridão em seu silêncio parecia entender suas palavras. Parecia lhe compreender. Ele prosseguiu:


- Prefiro ouvir música sozinho, rabiscar um caderno qualquer com palavras entre amor e ódio. Prefiro derramar pedaços líquidos da minha alma em meu travesseiro. Prefiro ignorar para não desejar a sua morte, pois ela não fez nada.


Com um respirar profundo se preparou e assumiu toda sua culpa.


- Sou eu quem me martirizo. Sou eu quem imagina milhões de cenas onde sou abandonado dizendo “Te Amo” enquanto minhas lágrimas caem, enquanto morro por dentro. Sou eu que encara tudo que vê como uma guerra e, as vezes preciso de um tempo para aceitar minha derrota, renascer. Afinal, devo admitir, escolho a quem dedicar isso que chamo de “amor” com tanto cuidado que talvez já não seja amor, seja obsessão. – Ele fechou os olhos, não havia diferença entre os mundos, permanecia em meio ao nada, mas eram suas últimas frases:


"O meu amor é suicida.

A cada sorriso meu para ela, cravo uma faca com minhas próprias mãos em meu coração.

As pessoas não entendem.

Eu não entendo.

Mas talvez não seja necessário entender."


Quando finalmente abriu os olhos devido ao barulho do interruptor as luzes haviam retornado ao quarto, Ela estava sorrindo encostada na porta, havia ligado as luzes, mas não entrou, apenas o convidou para tomar café e ele podia jurar que tinha acordado no paraíso. Já não havia escuridão, já não haviam segredos, apenas a verdade, enquanto ela afastava-se já de costas ele falou consigo sorrindo e caminhando em direção a sala:


- Receio que tenha nascido com alguns defeitos é claro, porém, confio plenamente que você os concertará sem perceber, que vai me ensinar como amar e a ser amado, afinal... – Segurou na cintura dela, beijou sua bochecha e falou ao seu ouvido.


– Eu tenho certeza que nasci especificamente para te amar.




Fim

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